terça-feira, 21 de maio de 2013

A Morte de Ivan Ilitch - Tolstói (Entre Pontos e Vírgulas)

(O texto abaixo contém spoilers, pois foi preparado para o debate do livro no Fórum Entre Pontos e Vírgulas)

A Morte de Ivan Ilitch, novela publicada por Tolstói em 1886, é um desses textos atemporais, impecáveis e únicos. O próprio título anuncia não só o que há de particular, trata-se de Ivan Ilitch, mas também o tema que é universal e necessário: a morte.

O aspecto que eu mais gostei nessa minha releitura é a profusão de contrastes que Tostói nos traz em uma narrativa tão breve, mas, ao mesmo tempo, com um final tão denso... (E como diz o Paulo Rónai no posfácio dessa edição da 34: que descrição do momento da morte!).

A narrativa nos coloca diante de uma dialética entre o particular e o universal e entre a vida e a morte. Depois de uma descrição seca de uma vida que eu chamaria de opaca (sem vida, cor, sobressaltos), somos arrebatados por uma morte extremamente vívida! E aí é que passamos do particular (do "tipo" que o autor está descrevendo e podemos nos identificar parcialmente ou não) ao universal: todos experimentamos a morte, a proximidade e a necessidade da morte - o que, inevitavelmente, nos faz rever nossas escolhas passadas e nossas finalidades na vida.

Nas minhas reflexões para além do texto fiquei também pensando que tudo contribui para a angústia crescente (do leitor) que se depara com o vazio cada vez maior (e mais insosso) da vida de Ivan Ilitch, para, em seguida, se sentir imerso no fato de como a sua morte (que ele experimenta no momento em que tem a certeza da morte e não apenas na consumação desta!) se torna o um evento radical, solitário e atemorizante. [O que eu quero dizer é que há uma forte união entre o conteúdo/texto e o estilo da escrita que nos faz experimentar esse contraste fortíssimo!]. 

Ivan Ilitch é o protótipo do burguês burocrata. Não tem grandes paixões ou ideais na vida; seus únicos motores são o trabalho (o que envolve a busca de promoções e uma segurança financeira apenas, e não algum tipo de realização pessoal) e sua parca vida social. Sua vida íntima é também marcada pela ausência de fortes desejos e sentimentos: o seu casamento se deu por conveniência social e viveu quase a vida toda uma relação superficial com a esposa e os filhos. Prazer? Apenas no jogo; e nada avassalador, pelo que percebemos.

Como o trecho abaixo ilustra de forma brilhante: a vida toda de Ivan Ilitch é permeada por um cotidiano impessoal e racionalizado, na qual há pouco ou nenhum lugar para afetos e relacionamentos mais profundos e radicais.

A Morte de Ivan Ilitch; editora 34, pág. 33

Os momentos de decepção e tristeza (se é que há algum sentimento mais forte) ficam por conta dos reveses ligados à ascensão profissional e, por conseguinte, à manutenção da sua reputação social.




Eis que a sua própria vida (e o quão "diminuta" ela teria sido) só se torna uma questão quando ele se vê diante da doença sem solução, e quando compreende a imutabilidade da morte iminente!




Continuando com os contrastes: o tratamento demasiado impessoal do médico traz à tona para Ivan Ilitch uma revolta que ele nunca sentiu quando estava "do outro lado"/da burocracia. O tipo de tratamento superficial e distante que recebe do médico, da sua esposa, da filha; tudo isso só reforça a falsidade e a pequenez que ele agora vê na sua antiga vida. 

A todo momento o desespero de Ivan Ilitch só vai aumentando e não vem tanto da dor, mas da experiência da morte, do fim. Tentando reconstituir seu passado vê poucos momentos (a infância e/ou na faculdade talvez) realmente autênticos. 
Outro elemento de contraste é o criado G. que representa a simplicidade da vida (e a tranquilidade da alma) que ele nunca teve e não tem agora diante da morte, do fim de tudo; um "tudo" que ele não consegue ver sentido algum.

Confesso que me deu muito prazer reler essa novela ao mesmo tempo em que leio pela primeira vez outra obra magistral de Tolstói: Anna Kariênina! E isso porque pude observar a mudança grande na escrita e a complexidade deste grande escritor e pensador. Se em Anna eu me envolvo completamente no enredo a partir da vida interior e da riqueza de cada personagem com suas dúvidas, hesitações, escolhas e emoções; em Ivan eu me assusto com o quanto o homem (todos nós) pode despir-se de sua humanidade e transformar a própria vida em mero seguimento de procedimentos burocrático-sociais (e perder-se no meio disso)*.

O que posso dizer é que a morte extremamente vívida de Ivan Ilitch é inesquecível: sei que retornarei à ela não como algo distante, mas como algo muito próximo sempre que a rotinização dos procedimentos cotidianos me separar daquilo que me faz humana e me despir de vida, de propósito, de finalidade... 



*Sei que a comparação é meio descabida: um romance de proporções enormes como Anna e uma novela. Mas o ponto é a mudança na forma do texto, no estilo. É notável e interessantíssimo acompanhar essa transformação da escrita (que tem muito que ver com os propósitos e com a mudança mesmo de Tolstói: a morte se torna cada vez mais um tema e uma realidade que o atormentava muito. Não apenas a morte em si, mas o fato de que ele não conseguia implementar em sua vida pessoal a mudança de vida que ele tanto desejava - a saber, uma vida mais simples, mais próxima da natureza e despida das conveniências sociais!).

7 comentários:

  1. Concordo que A Morte de Ivan Ilitch é atemporal, impecável e único. Em poucas páginas Tolstói descreve com grande realismo os tormentos que afligem o personagem-título. Você consegue quase palpar. Eu, por exemplo, recordei de momentos tristes (até citei rapidamente no meu post). Acredito que Tolstói emprestou muito de si para Ivan (como é comentado no apêndice desta edição da editora 34). Realmente, o autor é tão direito que a morte do enfermo é mais vivida que a própria vida. Também achei o final da novela espetacular! Depois de tanta angustia, o alívio.
    Acho a comparação entre a novela e o romance válido, pq mostra a versatilidade do autor.
    Ótimo texto, Denise! Adorei!
    Momento OFF: Querida Denise, por favor, pare de fazer propaganda de Anna Karenina, rs.
    Abraços!

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    1. Ahahaha, está todo mundo me pedindo para parar de falar de Anna Kariênina, mas o que posso fazer: estou apaixonada, Lulu!
      Inclusive eu vi (agora que estou no final) várias outras comparações que poderiam ser feitas com A Morte de Ivan Ilitch! ;)
      De verdade, um final incrível!
      Beijos!

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  2. Outra analise muito completa Denise :)
    Definir a vida dele como burocrática é excelente, representa muito bem as escolhas do personagem. Esse livro me serviu muito bem como um espelho apesar de não ter me apaixonado por ele.

    Fiquei imaginando um tempo o lugar do criado "G" na história, mas não cheguei em um lugar muito certo, gostei da sua interpretação dele - colocar as pernas para cima - combina bem com o tipo no livro, vou adotar para mim. rs


    Abraços

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    1. Obrigada, Filipe!
      Eu ri aqui com o "colocar as pernas para cima", rs.
      Acho que no fundo, Tolstói exalta na figura do camponês e/ou dos criados uma simplicidade e tranquilidade de alma que tem a ver com essa distância do mundo social mais motivado por aparência e desumanizado. Ele se revoltava muito com isso e acho que, por ser esta uma grande busca da sua vida, é bem interessante ver como este ideal aparece em suas obras.
      Abraços, meu caro!

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  3. Denise, como você escreve bem! Adorei sua resenha.
    Suas impressões foram bem parecidas com as minhas. Depois da leitura de "Anna Karenina" estou correndo atrás de todas as obras do Tolstói. Ele é sério candidato a se tornar um dos meus preferidos!
    Beijos

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    1. Ei Michelle, obrigada!
      Eu também estou procurando mais livros dele, porque me apaixonei pela escrita e pelos personagens que ele cria! ;)
      Abraços,

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  4. Li este livro há anos atrás e permanece sendo minha obra favorita da literatura russa, junto com "Pais e Filhos". Realmente é a obra mais bem "acabada", mais "enxuta" de Tolstoy. Falo com propriedade: estou no meio de "Guerra e Paz" e já li diversas outras obras do autor. Tolstoy é magnífico, mas às vezes divaga muito. No Ivan Ilitch ele é conciso, preciso, tal qual Graciliano no "Vidas Secas": diz só o necessário.

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