quarta-feira, 14 de março de 2012

Eu, Rubem Fonseca e A Grande Arte...


Um dia eu encontraria o Rubem Fonseca; era só uma questão de tempo. Bem lá no íntimo eu sabia disso, da inevitabilidade desse momento... Mas é claro que o fato dele estar ao meu alcance na livraria mais próxima não contava; certos encontros não podem se dar por vias regulares, exigem o extraordinário.

Enquanto James Joyce e eu não nos comunicávamos - ele falando de uma Dublin cinza e solitária, eu em meio a uma tarde de carnaval super ensolarada e sonolenta - eis que me aventurei pela biblioteca da casa do meu pai e dou de cara com o Rubem e a capa enigmática de "A Grande Arte". Confesso que ver Rubem Fonseca em rosa pink me assustou; parecia algo extremamente anacrônico, sem lugar. Entendam, eu não esperava o Rubem de rosa; antes mesmo de conhece-lo eu sabia que ele era preto, branco, cinza, verde musgo, vermelho sangue, excreções e submundos.

Ao folhear as primeiras páginas e ver que se tratava de uma das histórias do Mandrake, meu coração pulou! Isso porque, como amante de romances policiais, eu também meio que já me sentia íntima e desejosa do grande Mandrake.

O que posso dizer? Sabem aqueles primeiros encontros onde desde o início cada olhar, cada sorriso, cada palavra te incentivam mais e mais a querer reencontrar a pessoa? ; )

Por tudo isso eu não consegui mais largar A grande arte e passei ele na frente da fila de muitos e muitos livros (e inclusive, confesso, abandonei a leitura de Joyce pela metade...). Não fosse a falta de tempo absurda, eu teria lido em poucos dias certamente; mas deixei que ele me acompanhasse noites e noites, capítulo por capítulo...

Rubem Fonseca se apresenta de cara, não há subterfúgios. Nas primeiras páginas, já é possível saber se você irá amá-lo ou odiá-lo. A sua escrita é seca, objetiva, realista, irônica e rápida; por alguns momentos dá para esquecer que é um livro e visualizar as palavras como se fossem imagens de um filme. Acho que isso ocorre especialmente pela profusão de diálogos e pela narrativa direta.

Uma das coisas que achei mais interessante é que o enredo em si (o mistério) foi o elemento menos apelativo para mim; o que convenhamos não é o costume em romances policiais. Não que não tenha sido interessante; é engenhoso e pleno de personagens (o que eu gosto muito), idas e vindas no tempo e no espaço. Mas o que deu todo o charme e prendeu minha atenção foi o estilo da narrativa/escrita de Rubem e, também, o fato de que eu simplesmente me apaixonei pelo Mandrake com força!

Como não amar um detetive que tem uma gata chamada Elizabeth Feijão? ; )

“Elizabeth feijão era uma gata siamesa vesga, de olhos azuis. Nascera na casa de uma japonesa chamada Mitsuko, que a habituara a comer sardinha crua. Quando foi para minha casa aprendeu a comer ovos, carne, legumes, verduras, feijão com arroz, mouros e cristianos, à maneira cubana. À medida que envelhecia, Elizabeth, além de tornar-se rabugenta, passara a exigir, como vitualhas, apenas sardinhas frescas, recusando-se a comê-las se antes tivessem sido congeladas e protestando com insistência e veemência se fossem colocadas no seu prato. Por ter a consciência pesada (pois levara Elizabeth, ainda púbere, para ser castrada) eu, ou a empregada, diariamente percorríamos as feiras livres e peixarias da cidade à cata de sardinhas frescas. Também agora, mal o dia raiava, Elizabeth exigia ruidosamente que a areia do seu banheiro, um tabuleiro de alumínio que ficava na parte de serviço do apartamento, fosse removida e substituída por areia limpa. Quando jovem Elizabeth raramente se manifestava, o único ruído que produzia regularmente era o das unhas sendo afiadas no carpete ou nos estofados das poltronas. Era preciso que lhe pisassem o rabo, ou coisa pior, para que emitisse uma pequena miadela. Mas agora dava lancinantes gemidos sem motivo aparente, só cessando quando eu a pegava no colo e lhe dava beijos e falava com ela.Passara a detestar a solidão, um dos grandes prazeres dos gatos jovens e saudáveis.  Quando eu chegava em casa, do escritório, ela me seguia pela casa, da maneira indigna dos cães, implorando carinho.” pág. 39.

Há algum tempo não lia pura poesia do cotidiano assim! rs

Para além do "caso"/mistério em questão, Rubem Fonseca é extremamente dedicado ao nos mostrar esse personagem com toda sua complexidade, os meandros da sua vida amorosa, suas percepções sobre o mundo e as pessoas a todo momento. Ironias deliciosas em meio a momentos difíceis...

A capacidade de Mandrake de intuir as pessoas e seus dramas e traduzi-los em algumas palavras é um dos elementos centrais mais engraçados da narrativa. Em vários momentos da leitura eu me pegava rindo alto, kkk.

“Passeava pela varanda do hotel, de cara fechada, para que nenhum estranho se aproximasse, e a única pessoa com quem gostava de conversar era seu Lopes, um português de oitenta e cinco anos, que conheci por acaso na rua. Lopes andava com vigor e falava com clareza, apesar da falta de dentes em sua boca. Fazíamos longas caminhadas pelos arredores da cidade. Lopes não acreditava que fosse o exercício a causa de sua longevidade e sim o fato de nunca ter sentido inveja de ninguém. Morava numa pensão onde tinha tudo que precisava, menos mulher para a cama – e dizia isso com ar matreiro de quem não estava dizendo a verdade e queria que eu supusesse a mentira” pág. 92

“O pregador não tinha dois dentes da frente e isso, para mim, lhe dava alguma credibilidade. As pessoas sem dentes me comoviam. Além do mais era pálido e parecia hospedar em seu corpo todos os vermes conhecidos e desconhecidos da parasitologia tropical” pág. 107.

“Era uma mulher de uns trinta anos, de cabelos oxigenados. Tinha a pele das pessoas que apanham muito sol aos domingos e nenhum nos outros dias” pág. 248.


Para terminar um último trecho inspirador no campo memórias de Mandrake, rs.


“Para dormir eu tinha que deitar na cama e deixar o sono vir. Qualquer coisa me tirava o sono – ler, ver televisão, filme em videocassete, ouvir música. Quando era criança colocaram um relógio muito grande na minha mesinha-de-cabeceira e seu tique-taque não se ouvia de dia. Mas à noite, quando estava deitado, e minha mãe apagava a luz pela terceira vez ordenando que dormisse, eu ficava prestando atenção àquele ruído constante, imaginando as coisas que iria fazer, e ser, na vida: Beau  Sabreur, Pimpinela Escarlate, Pardaillan (...), imaginações retiradas de livros. Disse o médico consultado: Ésse menino só precisa dormir: dormir para sonhar’. O médico não sabia que eu sonhava acordado e passei a fingir que dormia, enquanto continuava sonhando. Durante dois meses inteiros não dormi uma noite sequer”. págs. 241-242.


A Grande Arte foi meu reencontro em grande estilo com Rubem Fonseca e, na verdade, o livro que me fez amar sua escrita e seu principal personagem ficcional. Gostei muito mesmo e indico com força! Acho que irá encantar não só quem gosta de literatura policial, pois a complexidade com que ele constrói os personagens e se dedica aos dramas existenciais de cada um, a narrativa e os cenários que ele cria e a sua linguagem mesmo são apaixonantes!

Abraço.

5 comentários:

  1. Oi Denise!
    Que coisa mais fofa o nome da gata!!! Amei! Elizabeth Feijão! hahahahahah
    Bjos

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  2. D, do Rubem Fonseca só li um livro, "O seminarista". Gostei. É daqueles livros simples e ao mesmo tempo gostosos de ler, né? Se quiser, posso emprestar pra vc!
    Beijos

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  3. Oi Ísis,
    eu também amei!!! kkkk
    Beijos!

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  4. Dáf.,
    quero sim, claro! Vamos incluir ele nas nossas trocas de livros? ; )
    Eu comprei "Romance Negro e outras histórias" do Rubem, mas tenho tantos livros na fila que nem sei quando vou conseguir ler!!!! rs
    Beijo grande!

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  5. Pesquisando Rubem Fonseca, descobri seu blog :)
    Fiquei muito bem impressionada com o estilo dele em "Feliz ano novo". Li em 2007 e acho que foi ali que senti liberdade pra desenvolver a minha voz no "Hell de Janeiro - o noir bronzeado".

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